sábado, 26 de junho de 2010

Poema


Não sei nada
Não compreendo nada
E não irei sem nada ter aprendido
Senão as lições da minha própria angústia.
No entanto
Desta luta de punhais que se travou dentro de mim
Continuo a guardar lençóis manchados
Até o dia antes do fim de tudo
Em que hei de expor ao sol os mapas desta viagem

Renata Palottini

quinta-feira, 24 de junho de 2010

PARA OS SALGUEIROS JUNTO AO RIO




Um halo em jade às margens devolutas

nuvens procuram pavilhões distantes

As sombras deitam-se no rio de outono

as flores descem sobre os pescadores

Raízes densas são abrigo aos peixes

e enlaçam os ramos barcos visitantes

Suspira a noite à chuva geme ao vento

vertem tristeza os sonhos revolutos


赋得江边柳

翠色连荒岸,

烟姿入远楼。

影铺秋水面,

花落钓人头。

根老藏鱼窟,

枝低系客舟。

萧萧风雨夜,

惊梦复添愁。


Yu Xuanji

鱼玄机

terça-feira, 22 de junho de 2010

Valsas de Esquina de Mignone



Só um pássaro
e seu peso de orvalho tocando
o chão como se foram teclas.
Passa onde a graça
ilumina a cidade de ferro
subitamente atenta a essa beleza.

Nos jardins teimam rosas
delicadamente.
Violetas africanas
salpicam de ouro
muros escuros
e as princesas purpúreas
espiam dos balcões verdes
nas paredes florescidas:
dançam pétalas
dança a vida
nos jardins contentes
não termina a partitura
que se repete
sempre.

Dora Ferreira da Silva

domingo, 20 de junho de 2010

Não tem volta





Se você vai por muito tempo
você nunca volta.
Você retorna,
Você contorna
mas não tem volta
a estrada te sopra pro alto
pra outro lado
enquanto
aquele tempo
vai mudando.
Aí, de quando
em quando você lembra
aquele beijo,
aquele medo
mas você sabe
que tudo ficou antigo
e você não volta
nem com escolta
nem amarrado
porque o passado
já te perdeu
e o perigo
muda mesmo de endereço
Não existe pretexto.
O dia mudou
o carteiro não veio
o principio é o meio
e você retorna
mas não tem volta.

Zélia Duncan

sábado, 19 de junho de 2010

Mulher (em definição)






Mulher-Poesia
que deixa no meu corpo bocados de poema

Mulher-Criança
que desce à minha infância
e me traz adulta

Mulher-Inteira
repartida no meu ser

Mulher-Absoluta
Fonte da minha origem

Manuela Amaral

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ontem à noite







Ontem à noite, depois da sua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês de junho, esse mês que inaugura o Inverno. Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba. Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque. E depois comecei a escrever...

Marguerite Duras
Tradução de Tereza Coelho

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O Homem Muito Rico




Ele tinha tido do melhor, e não se contentava em ser o
rei.
Nada era barreira, tudo em seus termos de trocas
Ele descansa baixo, corretamente em madeira de lei
e entretém as mais exclusivas minhocas.


Dorothy Parker
(Tradução: Angela Carneiro)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Olmo






Sei o que há no fundo, ela diz. Conheço com minha própria raiz.
Era o que você temia.
Eu não: já estive lá.

É o mar que você ouve em mim,
Suas frustrações?
Ou a voz do vazio, essa é a sua loucura?

O amor é uma sombra.
Como você chora e mente por ele.
Ouça: estes são seus cascos; fugiram, como cavalos.

Vou galopar a noite inteira assim, impetuosa.
Até que sua cabeça vire pedra, seu travesseiro vire turfa,
Ecoando, ecoando.

Ou devo te trazer o borbulhar das poções?
Isso agora é chuva, esse silêncio imenso.
E este é seu fruto: branco-metálico, como arsênico.

Sofri a atrocidade dos poentes.
Queimada até as raízes
Meus filamentos ardem e ficam, emaranhado de arames.

Meus estilhaços se espalham em centelhas.
Um vento violento assim
Não suporta obstáculos: preciso gritar.

A lua, também, não tem pena de mim: me engole,
Cruel e estéril
Seus raios me arruínam. Ou quem sabe a peguei.

Eu a deixo fugir, fugir
Magra e minguante, como depois de uma cirurgia radical.
Seus pesadelos me enfeitam e me possuem.

Dentro de mim mora um grito.
De noite ele sai com suas garras, à caça
De algo para amar.

Sou torturada por essa coisa negra
Que dorme em mim;
O dia inteiro sinto seu roçar leve e macio, sua maldade.

Nuvens passam e se dissipam.
São estas as faces do amor, pálidas, irrecuperáveis?
Foi pra isso que atormentei meu coração?

Não consigo compreender além.
E o que é isso agora, essa cara
Assassina com seus galhos sufocantes? -

O beijo traiçoeiro da serpente.
Petrifica o desejo. Esses são os erros, solitários e lentos,
Que matam, matam, matam.

SYLVIA PLATH

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O ano inteiro




aos domingos te sinto mais
sei que estás
sei que me chamas para a rua
que me levas em tuas procuras
apenas para acompanhar-te
e garimparmos os gestos
e as ausências dos vivos

às segundas não me querers
sabes que a luta me toma
te comportas na fotografia

às terças estou conformada
às quartas me deprimo
às quintas me acendo
às sextas já sou domingo

HELENA ORTIZ

domingo, 6 de junho de 2010

Se




se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra

eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto

ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio

daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse...




ALICE RUIZ