quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Até quando terás, minha alma, esta doçura
Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?
Cecília Meireles
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
TUDO DE MIM
Acordo bonita, dourada como um dia de conquista
mas, às vezes, insone como a solidão que te agonia
armada de argumentos fortes, pueris ou liberais
também na defensiva: artificial metáfora... fria
energúmena e sagaz, perfumada com luxúria
enfeitada, pura, diáfana indumentária... fugidia
sou livre, paciente, delicada e performática...
o que desejas de mim hoje? – De tua servil poesia!
Maria de Fátima Maia
domingo, 31 de outubro de 2010
Lição de casa
Você tampa a panela,
dobra o avental,
deixa a lágrima secar no arame do varal.
Fecha a agenda,
adia o problema,
atrasa a encomenda,
guarda insucessos no fundo da gaveta.
A idéia é tirar a tarja preta
e pôr o dedo onde se tem medo.
Você vai perceber
que a gente é que faz o monstro crescer.
Em seguida superar o obstáculo,
pois pode-se estar perdendo
um espetáculo acontecendo do outro lado.
Atravessar o escuro
até conseguir tatear o muro,
que é o limite da claridade.
Se tiver capacidade para conquistá-la,
tente retê-la o mais que puder.
Há que ter habilidade, sem esquecer
que a luz é mulher.
Do inferno assim desmascarado,
é hora de voltar.
Não importa se é caminho complicado,
se a curva é reta,
ou se a reta entorta.
Você buscou seu brilho, voltou completa;
jogou a tranca fora, abriu a porta.
Flora Figueiredo
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
ELEGIA
Há um vestígio mineral
na sua ausência: algo
que sem estar ainda
fica: fatia de cristal
que não se vê e brilha:
solidez em transparência
elegância de pedra, luz
do que é perda e não.
Há um vestígio musical
na sua ausência: algo
que é sigilo e ressonância:
sintonia de cristais
sílabas de sim no
silêncio do som e do aqui.
Maria Esther Maciel
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
O Que Eu Quero
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Lua
domingo, 12 de setembro de 2010
Fragmentos de Eliot
Pertence a ti toda esta tarde
e a tarde pode resumir uma vida inteira.
Finges que compreendes teu amigo
e sorris ou mostras um rosto grave
conforme o assunto debatido.
Te perdes em dúvidas, nem te interessam
os gerânios, jacintos e lilases
destruídos nos versos de Eliot.
A agonia cabe em uma tarde.
Adele Veber
domingo, 5 de setembro de 2010
NÓS (canção)
nós somos a forma bonita, completa de se cantar
nós somos a voz e a palavra que nunca vão acabar
cantando e amando e vivendo
com toda a vontade que é possivel ter
nós somos a forma bonita, completa de se viver
nós somos o ser extravazado que o nosso sentir nos dá
o mito complexificado em busca do que não há
cantando e amando e vivendo
com toda a verdade que é possivel ter
nós somos a forma bonita, completa de se viver
e eu canto e eu quero o que eu canto
eu preciso cantar para encher essa forma
eu sou o que eu canto
é na voz que eu rebento de mim
alguém completado na vida
prolongado na morte que já ninguém tem
a partir do momento em que a forma bonita
se encheu de uma essencia qualquer de ser
nós somos a dor mais profunda que existe em todo o planeta
nós somos também a alegria melhor que se inventa
se alguém perguntar afinal
o que é que nós somos de tão lindo assim
a resposta é tão simples
basta olhar pra vocês e para mim
Mafalda Veiga
sábado, 14 de agosto de 2010
O AMOR É COMO UM GATO
domingo, 1 de agosto de 2010
VERGONHA
- “Menina!” Disse alguém, no grande instante
em que era dividido em dois um ser...
E essa palavra, pelo mundo avante,
foi meu santo orgulho de viver...
Ser menina. Ser moça. Ser constante.
Ser caráter. Ser honra. Ser dever.
Por mais tropeços que encontrasse adiante
nunca me entristeci de ser mulher.
Mas veio o Amor. Veio a traição ferina
e todo o orgulho meu de ser menina,
roubou-o a sorte, malfadada e crua;
e veio a dor, e veio a mágoa, o tédio,
e a vergonha escaldante e sem remédio
de ter sido mulher para ser tua.
Benedita de Melo
domingo, 18 de julho de 2010
MINHA SENHORA DE QUÊ
dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas deslumbrantes folhas
nem eu me projectei
se os versos apressados
me nascem sempre urgentes:
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada
dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção
se sentidos diversos ocultados
nem do oculto nascem
(poética do Hades quem mdera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos
ANA LUÍSA AMARAL
terça-feira, 6 de julho de 2010
sábado, 26 de junho de 2010
Poema
quinta-feira, 24 de junho de 2010
PARA OS SALGUEIROS JUNTO AO RIO
Um halo em jade às margens devolutas
nuvens procuram pavilhões distantes
As sombras deitam-se no rio de outono
as flores descem sobre os pescadores
Raízes densas são abrigo aos peixes
e enlaçam os ramos barcos visitantes
Suspira a noite à chuva geme ao vento
vertem tristeza os sonhos revolutos
赋得江边柳
翠色连荒岸,
烟姿入远楼。
影铺秋水面,
花落钓人头。
根老藏鱼窟,
枝低系客舟。
萧萧风雨夜,
惊梦复添愁。
Yu Xuanji
鱼玄机
terça-feira, 22 de junho de 2010
Valsas de Esquina de Mignone
Só um pássaro
e seu peso de orvalho tocando
o chão como se foram teclas.
Passa onde a graça
ilumina a cidade de ferro
subitamente atenta a essa beleza.
Nos jardins teimam rosas
delicadamente.
Violetas africanas
salpicam de ouro
muros escuros
e as princesas purpúreas
espiam dos balcões verdes
nas paredes florescidas:
dançam pétalas
dança a vida
nos jardins contentes
não termina a partitura
que se repete
sempre.
Dora Ferreira da Silva
domingo, 20 de junho de 2010
Não tem volta
Se você vai por muito tempo
você nunca volta.
Você retorna,
Você contorna
mas não tem volta
a estrada te sopra pro alto
pra outro lado
enquanto
aquele tempo
vai mudando.
Aí, de quando
em quando você lembra
aquele beijo,
aquele medo
mas você sabe
que tudo ficou antigo
e você não volta
nem com escolta
nem amarrado
porque o passado
já te perdeu
e o perigo
muda mesmo de endereço
Não existe pretexto.
O dia mudou
o carteiro não veio
o principio é o meio
e você retorna
mas não tem volta.
Zélia Duncan
sábado, 19 de junho de 2010
Mulher (em definição)
sexta-feira, 18 de junho de 2010
Ontem à noite
Ontem à noite, depois da sua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês de junho, esse mês que inaugura o Inverno. Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba. Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque. E depois comecei a escrever...
Marguerite Duras
Tradução de Tereza Coelho
segunda-feira, 14 de junho de 2010
O Homem Muito Rico
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Olmo
Sei o que há no fundo, ela diz. Conheço com minha própria raiz.
Era o que você temia.
Eu não: já estive lá.
É o mar que você ouve em mim,
Suas frustrações?
Ou a voz do vazio, essa é a sua loucura?
O amor é uma sombra.
Como você chora e mente por ele.
Ouça: estes são seus cascos; fugiram, como cavalos.
Vou galopar a noite inteira assim, impetuosa.
Até que sua cabeça vire pedra, seu travesseiro vire turfa,
Ecoando, ecoando.
Ou devo te trazer o borbulhar das poções?
Isso agora é chuva, esse silêncio imenso.
E este é seu fruto: branco-metálico, como arsênico.
Sofri a atrocidade dos poentes.
Queimada até as raízes
Meus filamentos ardem e ficam, emaranhado de arames.
Meus estilhaços se espalham em centelhas.
Um vento violento assim
Não suporta obstáculos: preciso gritar.
A lua, também, não tem pena de mim: me engole,
Cruel e estéril
Seus raios me arruínam. Ou quem sabe a peguei.
Eu a deixo fugir, fugir
Magra e minguante, como depois de uma cirurgia radical.
Seus pesadelos me enfeitam e me possuem.
Dentro de mim mora um grito.
De noite ele sai com suas garras, à caça
De algo para amar.
Sou torturada por essa coisa negra
Que dorme em mim;
O dia inteiro sinto seu roçar leve e macio, sua maldade.
Nuvens passam e se dissipam.
São estas as faces do amor, pálidas, irrecuperáveis?
Foi pra isso que atormentei meu coração?
Não consigo compreender além.
E o que é isso agora, essa cara
Assassina com seus galhos sufocantes? -
O beijo traiçoeiro da serpente.
Petrifica o desejo. Esses são os erros, solitários e lentos,
Que matam, matam, matam.
SYLVIA PLATH
quarta-feira, 9 de junho de 2010
O ano inteiro
aos domingos te sinto mais
sei que estás
sei que me chamas para a rua
que me levas em tuas procuras
apenas para acompanhar-te
e garimparmos os gestos
e as ausências dos vivos
às segundas não me querers
sabes que a luta me toma
te comportas na fotografia
às terças estou conformada
às quartas me deprimo
às quintas me acendo
às sextas já sou domingo
HELENA ORTIZ
domingo, 6 de junho de 2010
Se
se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra
eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto
ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio
daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse...
ALICE RUIZ
sexta-feira, 21 de maio de 2010
Prelúdio
Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...
É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...
Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.
É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...
Alda Lara - Poeta Angolana
Aprendi
... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, espararei quanto tempo for preciso.
Clarice Lispector
Canção Grata
Por tudo o que me deste
inquietação cuidado
um pouco de ternura
é certo mas tão pouca
Noites de insônia
Pelas ruas como louca
Obrigada, obrigada
Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão
Que bem que me faz agora
o mal que me fizeste
Mais forte e mais serena
E livre e descuidada
Sem ironia amor obrigada
Obrigada por tudo o que me deste
Por aquela tão doce
e tão breve ilusão
Embora nunca mais
Depois de que a vi desfeita
Eu volte a ser quem fui
Sem ironia aceita
A minha gratidão
Florbela Espanca
Espelho
Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.
Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.
Sylvia Plath
A Ética
Há que existir Ética no Amor.
Se há Estética, há de existir Ética. Pois sem ela, Eros voa. Desprende. Escapa. E a beleza fica só. E o amor se enfeia.
Só há um caminho para o Amor. E as pedrinhas brancas que ladeiam essa estrada são feitas de delicadeza. Deve-se pisar leve. Mas são pedras e não cascas de ovos. É possível pairar sobre elas e depois soltar todo o peso que não se quebrarão. Você será sustentado para ganhar impulso. Acolherão seus pés com sandálias douradas. E será possível brincar. E olhar para as flores. E sentir calor. E conversar com o Bicho Papão. Desabar em carreira, serenar o ritmo. Deitar-se na estrada, dormir. Acordar. Percorrê-la.
Não dá pra amar de qualquer jeito.
Não basta o Amor substantivo sem o verbo que lhe dá Ânimo.
É preciso aprender a conjugar – que se enverede pelos caminhos do Érebo mas que, depois, se faça a luz.
O amor que eu vi, existe. E é Belo. E é Bom.
Anayde Beiriz
Frustração
Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o
uma vez, outra vez (sonhos insanos!)...
e desespero haja maior não creio
que o da esperança dos primeiros anos.
Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio
do meu silêncio, aquém de olhos profanos,
carícias virgens para quem não veio
e não virá saber dos meus arcanos.
Desilusão tristíssima de cada
momento, infausta e imerecida sorte,
de ansiar o amor e nunca ser amada!
Meu beijo intenso e meu abraço forte,
com que pesar penetrareis o Nada,
levando tanta vida para a morte!.
Gilka Machado
TREZE VERSOS
E finalmente pronunciaste a palavra
não como quem se ajoelha,
mas como quem escapa da prisão
e vê o sagrado dossel das bétulas
através do arco-íris do pranto involuntário.
E à tua volta cantou o silêncio
e um sol muito puro clareou a escuridão
e o mundo por um instante transformou-se
e estranhamente mudou o sabor do vinho.
E até eu, que fora destinada
da palavra divina a ser a assassina,
calei-me, quase com devoção,
para poder prolongar esse instante abençoado.
Anna Akhmátova - 1963
Mapa
Entrar numa cidade
é como desvendar as linhas
misturadas de um bordado.
A cada virar de esquina
uma trama desconhecida
espreita.
Quantos amores
flutuam no vento,
quantas invisíveis pegadas,
sussurros,
mortes, nascimentos?
Para cada um
a cidade é distinto mapa.
Ao cair da tarde,
como um pescador
apanha as redes,
há que recolher
as sílabas das pedras.
Roseana Murray
As Gabirobas
em nosso peito, pai, mora o frescor das gabirobas
amontoadas em sacos escuros de onde saíam folhas
de alguma floresta escura que penetravas sozinho
o cheiro enchia a cozinha a mãe corria para
apanhar as vasilhas os cachorros latiam sua sombra
nós espremíamos o sumo nos dentes e a penumbra
pairava nos bagos dos bosques açucarados
Vera Lúcia de Oliveira
CUME
A hora da tarde, a que põe
seu sangue nas montanhas.
Alguém nesta hora está sofrendo;
uma perda, angustiada,
neste entardecer, o único peito
contra o qual se estreitava.
Há algum coração em que molha
a tarde aquele cume ensangüentado.
O vale já está na sombra
e se enche de calma.
Mas, olha do fundo, que se incendeia
de rubor a montanha.
Eu me ponho a cantar sempre a esta hora
minha invariável canção atribulada.
Serei eu a que banha
o cume de escarlate?
Levo a mão a meu coração a mão e sinto
que meu lado jorra.
Gabriela Mistral
1889 - 1957
quinta-feira, 20 de maio de 2010
Canção na Plenitude
Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.
Lya Luft
quarta-feira, 19 de maio de 2010
De Afrodisíacos
Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo. Coisa do Teodoro, ele quem me contou, você sabe, marido depois de um certo tempo de casamento fala certas coisas com a mulher. O seu não fala? Pois é, e de novo tem um tempão que aconteceu. Lembra aquela história dos queijos? Igual. Demorou um par de anos pra me contar. O pessoal dele é assim, sem pressa. Tem uma história deles lá, que o pai dele, meu sogro, esperou 52 anos pra relatar. Diz ele que esperou os protagonistas morrerem. Tem condição? Mas o Teodoro — foi quando a gente mudou pra casa nova — teve de ir nas Goiabeiras tratar um marceneiro e passou, pra aproveitar, na casa da tia dele, a Carlina do Afonso, e encontrou lá o Gomide. Tou encompridando, acho que é só por medo do fim, mas agora já comecei, então. Então, diz o Teodoro, que o Gomide tirou do bolso do paletó uma trouxinha de palha de milho, cortadas elas todas iguaizinhas e amarradas com uma embirinha da mesma palha. Escolheu, escolheu, pegou uma bem lisa e bem branquinha, tirou o canivete do outro bolso, lambeu a palha pra lá, pra cá, e ficou um tempão lhe passando firme a lâmina, do meio pras pontas, de ponta a ponta, entremeando com lambidas. Depois, ainda segurando a palha entre os dedos, foi a hora de tirar e picar o fumo de rolo bem fininho. Ia picando e pondo na concha da mão. Acabou, guardou o rolo e ficou socavando o fumo na mão com a ponta do canivete. Depois pegou a palha, mais uma lambida e foi pondo nela o fumo, espalhando ele por igual na canaleta formada, pressionando bem pra ficar bem firme. Deu mais uma lambida na parte mais próxima do fumo e com os polegares e indicadores foi enrolando o cigarro devagarinho, uma enrolada e uma lambida, uma enrolada e uma lambida. Com o canivete dobrou uma das pontas para o fumo não escapar, tirou a binga do bolso, acendeu e pegou a pitar. Agora é que vem, ai, ai. Teodoro falou que o tempo todo da operação ele não despregava o olho daquilo. Disse que nem sabe o que tia Carlina arengava, só punha sentido no Gomide fazendo o pito. Diz ele que foi uma coisa tão esquisita — esquisita, não —, tão encantada que ele ficou de pau duro. É isso. Falou também que ficou doido pra sair dali, comprar palha, fumo de rolo e repetir tudo igualzinho ao Gomide. Eu entendo. Quando conheci o Teodoro, ele fumava e eu achava muito emocionante. Tenho muita saudade de quando não existia essa amolação de cigarro dar câncer, nem de mulher ser magra. A gente tinha mais tempo para o que precisa, não é mesmo? Será que faz mal mesmo? Colesterol, depois de tanto barulho, estão falando que já tem do bom. Qualquer dia vou pedir ao Teodoro pra dar uma fumadinha, só pra fazer tipo.
Adélia Prado
Texto extraído do livro "Filandras", Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 53.
terça-feira, 18 de maio de 2010
Humildade
Tanto a fazer!
livros que não se leem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.
Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.
E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redoma de cânfora.
(E uma canção tão bela!)
Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.
Cecília Meireles (1954)
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Conclusões de Aninha
Conclusões de Aninha
Cora Coralina
Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Enquanto faço o verso, tu decerto vives
"Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto."
Hilda Hilst
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